por Everardo Maciel
Fiquei estarrecido quando tomei conhecimento, pela mídia, que a mais alta autoridade da República, à época que eclodiu o denominado escândalo do mensalão, alegara tratar-se de um mero (sic) caixa dois.
Uma autoridade fiscal chegaria ao limite da perplexidade se ouvisse de um contribuinte - que praticara crime de sonegação por omissão de receita, por exemplo -, a justificação de que fora tão somente um cândido exercício de caixa dois. Pois bem, esse mau contribuinte poderia acrescentar que se inspirara em discurso de autoridade.
O advogado, no exercício de uma função essencial ao estado democrático de direito, tem a obrigação de buscar a absolvição ou, ao menos, a redução das penas que, em tese, seriam aplicáveis a seus clientes.
O que espanta, todavia, é ver políticos e advogados festejarem o crime do caixa dois, ante a possibilidade de prescrição. Bradam solenemente: foi apenas caixa dois. É a banalização da indecência.
Crime deve ser confessado de forma compungida e envergonhada, de cabeça baixa, com um mínimo sinal de arrependimento.
Somente criminosos doentios se vangloriam de suas iniquidades.
Essas condutas funcionam como uma espécie de cupins da frágil estrutura de valores da sociedade brasileira.
Somadas a outras, que de tão pequenas às vezes não são percebidas, vão minando as convicções das pessoas e arruinando o processo civilizatório.
A alegação do caixa dois não é, entretanto, um episódio isolado nesse processo de aviltamento dos valores. O ovo da serpente há muito se encontra instalado no estado brasileiro.
A redemocratização no Brasil, infelizmente, revigorou a condenável prática do fisiologismo. Não tendo sido decorrente de uma ruptura institucional, mas de um processo conciliatório, a redemocratização trouxe à mesa do governo personagens antes abrigados na oposição.
Os novos protagonistas da cena política exigiram, legitimamente, que fossem representados na administração pública, já sobrecarregada pelos oriundos da velha ordem. A Nova República iniciou a temporada das “indicações”. Foi a festa do velho fisiologismo.
A arena política passou a ser povoada por uma miríade de partidos e tendências, em que prevaleceram interesses localizados, pretextando o que foi chamado de presidencialismo de coalisão. O clássico fisiologismo, então, se sofisticou.
Se antes as postulações dos partidos políticos se limitavam às “indicações”, em um novo estágio elas se direcionaram para despudoradas demandas por “diretoria que fura poço” e tesouraria de estatais.
Mais recentemente, surgiu o que se chamou de aparelhamento, em que se pretendia um comprometimento ideológico dos indicados. Não é nada disso, entretanto, ainda que, em alguns momentos, se escutassem murmúrios de teses obscuras, cada vez mais subjugadas pelo pragmatismo.
Aparelhamento é apenas outra denominação do fisiologismo, aplicável à ambição de grupelhos políticos não tradicionais. Qualquer que seja o nome – fisiologismo, aparelhamento, apadrinhamento -, o que fica evidente é o propósito de tão somente manter-se no poder e dele se servir, na velhaca tradição patrimonialista brasileira.
Chegou-se, agora, à ousadia de cobrar-se fidelidade da toga aos donos do poder. Muitos políticos se espantam quando magistrados decidem de forma diferente da expectativa dos que os nomearam. Marianne, símbolo da República desde a Revolução Francesa, deve estar ruborizada.
Essas práticas pouco edificantes se combinam com obscenas barganhas e negócios tenebrosos, que têm por base as emendas parlamentares ao orçamento. Serão elas, mantido o modelo existente, uma fonte inesgotável de escândalos. Não raro, os acusadores de hoje se convertem nos acusados de amanhã. A maldição está em um sistema completamente vulnerável à corrupção.
O afrouxamento moral do Estado tem outras faces. Por exemplo, qual o respaldo moral para cobrar as dívidas dos contribuintes, se o Estado não paga precatórios, atrasa tanto quanto possível restituições e compensações de tributos, faz uso de todos os recursos procrastinatórios para evitar a liquidação de sentenças em que foi condenado? Essa assimetria de conduta, tão recorrente, é um desserviço à República e agride a moralidade.
Não me surpreendo, conquanto deplore, quando vejo cidadãos afirmando, publicamente, que não pagam impostos porque os políticos são corruptos. É o império da torpeza bilateral.
O que impressiona, de mais a mais, é constatar que essa crise axiológica, que não é recente, vem crescendo continuadamente, sem que nada interrompa sua execrável trajetória.
Há uma novidade, todavia. O Supremo Tribunal Federal, no julgamento dos réus do mensalão, independentemente das decisões que serão tomadas, trouxe a lume alguns conceitos alentadores, superando o ranço positivista que pretende a supremacia do formalismo sobre os fatos e construindo novas jurisprudências.
Assim, o que se colhe fora do juízo, ainda que não sejam provas cabais, robustecem as evidências extraídas no rito judicial. Nenhuma destinação, por mais meritória que seja, sacraliza dinheiro oriundo de peculato. Deve-se alegar caixa dois em tom contrito e penitente, jamais como um pecado escusável. Como contraponto, foi proclamado que pessoas inocentes têm o direito - não tão óbvio, para alguns - de serem declaradas inocentes.
Em “O Moleiro de Sans-Souci”, conto de François Andriex, um personagem, ao repelir a pretensão do Imperador Frederico II da Prússia de demolir seu moinho, reagiu com destemor: ainda há juízes em Berlim. Embora não concluído o julgamento do mensalão, as atitudes firmes e serenas dos Ministros do STF, nem sempre convergentes como autoriza a livre convicção, levam-me a admitir que ainda há juízes em Brasília. É uma réstia de esperança, até mesmo para os céticos, como eu.
Everardo Maciel é ex-secretário da Receita Federal
Curtam nossa página www.facebook.com/fatocidadao (O Cidadão)
Fiquei estarrecido quando tomei conhecimento, pela mídia, que a mais alta autoridade da República, à época que eclodiu o denominado escândalo do mensalão, alegara tratar-se de um mero (sic) caixa dois.
Uma autoridade fiscal chegaria ao limite da perplexidade se ouvisse de um contribuinte - que praticara crime de sonegação por omissão de receita, por exemplo -, a justificação de que fora tão somente um cândido exercício de caixa dois. Pois bem, esse mau contribuinte poderia acrescentar que se inspirara em discurso de autoridade.
O advogado, no exercício de uma função essencial ao estado democrático de direito, tem a obrigação de buscar a absolvição ou, ao menos, a redução das penas que, em tese, seriam aplicáveis a seus clientes.
O que espanta, todavia, é ver políticos e advogados festejarem o crime do caixa dois, ante a possibilidade de prescrição. Bradam solenemente: foi apenas caixa dois. É a banalização da indecência.
Crime deve ser confessado de forma compungida e envergonhada, de cabeça baixa, com um mínimo sinal de arrependimento.
Somente criminosos doentios se vangloriam de suas iniquidades.
Essas condutas funcionam como uma espécie de cupins da frágil estrutura de valores da sociedade brasileira.
Somadas a outras, que de tão pequenas às vezes não são percebidas, vão minando as convicções das pessoas e arruinando o processo civilizatório.
A alegação do caixa dois não é, entretanto, um episódio isolado nesse processo de aviltamento dos valores. O ovo da serpente há muito se encontra instalado no estado brasileiro.
A redemocratização no Brasil, infelizmente, revigorou a condenável prática do fisiologismo. Não tendo sido decorrente de uma ruptura institucional, mas de um processo conciliatório, a redemocratização trouxe à mesa do governo personagens antes abrigados na oposição.
Os novos protagonistas da cena política exigiram, legitimamente, que fossem representados na administração pública, já sobrecarregada pelos oriundos da velha ordem. A Nova República iniciou a temporada das “indicações”. Foi a festa do velho fisiologismo.
A arena política passou a ser povoada por uma miríade de partidos e tendências, em que prevaleceram interesses localizados, pretextando o que foi chamado de presidencialismo de coalisão. O clássico fisiologismo, então, se sofisticou.
Se antes as postulações dos partidos políticos se limitavam às “indicações”, em um novo estágio elas se direcionaram para despudoradas demandas por “diretoria que fura poço” e tesouraria de estatais.
Mais recentemente, surgiu o que se chamou de aparelhamento, em que se pretendia um comprometimento ideológico dos indicados. Não é nada disso, entretanto, ainda que, em alguns momentos, se escutassem murmúrios de teses obscuras, cada vez mais subjugadas pelo pragmatismo.
Aparelhamento é apenas outra denominação do fisiologismo, aplicável à ambição de grupelhos políticos não tradicionais. Qualquer que seja o nome – fisiologismo, aparelhamento, apadrinhamento -, o que fica evidente é o propósito de tão somente manter-se no poder e dele se servir, na velhaca tradição patrimonialista brasileira.
Chegou-se, agora, à ousadia de cobrar-se fidelidade da toga aos donos do poder. Muitos políticos se espantam quando magistrados decidem de forma diferente da expectativa dos que os nomearam. Marianne, símbolo da República desde a Revolução Francesa, deve estar ruborizada.
Essas práticas pouco edificantes se combinam com obscenas barganhas e negócios tenebrosos, que têm por base as emendas parlamentares ao orçamento. Serão elas, mantido o modelo existente, uma fonte inesgotável de escândalos. Não raro, os acusadores de hoje se convertem nos acusados de amanhã. A maldição está em um sistema completamente vulnerável à corrupção.
O afrouxamento moral do Estado tem outras faces. Por exemplo, qual o respaldo moral para cobrar as dívidas dos contribuintes, se o Estado não paga precatórios, atrasa tanto quanto possível restituições e compensações de tributos, faz uso de todos os recursos procrastinatórios para evitar a liquidação de sentenças em que foi condenado? Essa assimetria de conduta, tão recorrente, é um desserviço à República e agride a moralidade.
Não me surpreendo, conquanto deplore, quando vejo cidadãos afirmando, publicamente, que não pagam impostos porque os políticos são corruptos. É o império da torpeza bilateral.
O que impressiona, de mais a mais, é constatar que essa crise axiológica, que não é recente, vem crescendo continuadamente, sem que nada interrompa sua execrável trajetória.
Há uma novidade, todavia. O Supremo Tribunal Federal, no julgamento dos réus do mensalão, independentemente das decisões que serão tomadas, trouxe a lume alguns conceitos alentadores, superando o ranço positivista que pretende a supremacia do formalismo sobre os fatos e construindo novas jurisprudências.
Assim, o que se colhe fora do juízo, ainda que não sejam provas cabais, robustecem as evidências extraídas no rito judicial. Nenhuma destinação, por mais meritória que seja, sacraliza dinheiro oriundo de peculato. Deve-se alegar caixa dois em tom contrito e penitente, jamais como um pecado escusável. Como contraponto, foi proclamado que pessoas inocentes têm o direito - não tão óbvio, para alguns - de serem declaradas inocentes.
Em “O Moleiro de Sans-Souci”, conto de François Andriex, um personagem, ao repelir a pretensão do Imperador Frederico II da Prússia de demolir seu moinho, reagiu com destemor: ainda há juízes em Berlim. Embora não concluído o julgamento do mensalão, as atitudes firmes e serenas dos Ministros do STF, nem sempre convergentes como autoriza a livre convicção, levam-me a admitir que ainda há juízes em Brasília. É uma réstia de esperança, até mesmo para os céticos, como eu.
Everardo Maciel é ex-secretário da Receita Federal
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